Ética ou filosofia moral
Os costumes são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, de modo que acabam sendo considerados inquestionáveis e as sociedades tendem a naturalizá-los (isto é, a tomá-los como fatos naturais existentes por si mesmos). Não só isso. Para assegurar seu aspecto obrigatório que não pode ser transgredido, muitas sociedades tendem a sacralizá-los, ou seja, as religiões os concebem ordenados pelos deuses, na origem dos tempos. Como as próprias palavras indicam, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros.
A filosofia moral ou a disciplina denominada a ética nasce quando se passa a indagar o que são, de onde vêm e o que valem os costumes.
A filosofia moral ou a ética nasce quando, além das questões sobre os costumes, também se busca compreender o caráter de cada pessoa, isto é, o senso moral e a consciência moral individuais.
Podemos dizer, com base nos textos de Platão e de Aristóteles, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral inicia-se com Sócrates.
Sócrates inaugura a ética
Percorrendo praças e ruas de Atenas — contam Platão e Aristóteles —, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir. Que perguntas lhes fazia ele? Indagava: “O que é a coragem?”, “O que é a justiça?”, “O que é a piedade?”, “O que é a amizade?” A elas os atenienses respondiam dizendo serem virtudes. Sócrates voltava a indagar: “O que é a virtude?”. Retrucavam os atenienses: “É agir em conformidade com o bem”. E Sócrates questionava: “Que é o bem?”.
As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, quando um grupo conversava com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após um certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se diante de duas alternativas: ou zangar-se com a impertinência do filósofo perguntador e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia de Sócrates, a busca filosófica da virtude e do bem.
Por que os atenienses sentiam-se embaraçados (e mesmo irritados) com as perguntas socráticas? Por dois motivos principais: em primeiro lugar, por perceberem que confundiam valores morais com os fatos constatáveis em sua vida cotidiana (diziam, por exemplo, “Coragem é o que fez fulano na guerra contra os persas”); em segundo lugar, porque, inversamente, tomavam os fatos da vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes (diziam, por exemplo, “É certo fazer tal ação, porque meus antepassados a fizeram e meus parentes a fazem”). Em resumo, confundiam fatos e valores, pois ignoravam as causas ou razões por que valorizavam certas coisas, certas pessoas ou certas ações, e desprezavam outras. Por isso mesmo se embaraçavam ou se irritavam quando Sócrates lhes mostrava que estavam confusos, dizendo-lhes que haviam dito que a conduta de fulano era corajosa, mas não haviam explicado o que é a coragem, ou que a conduta de beltrano era justa, mas não haviam explicado o que é a justiça. Tais confusões, porém, não eram (e não são) inexplicáveis.
Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas ações e nossos comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo sociais, escola, religião, trabalho, circunstâncias políticas, etc.). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa maneira, valores e deveres parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os transgredimos.
Aristóteles e a práxis
Se devermos a Sócrates o início da filosofia moral, devemos a Aristóteles a distinção entre saber teórico ou contemplativo e saber prático. O saber teórico ou contemplativo é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem nossa intervenção ou interferência, isto é, de seres e fatos naturais e divinos. O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como conseqüência de nossa ação e, portanto, depende de nós. A ética e a política são um saber prático. O saber prático pode ser de dois tipos: práxis ou técnica.
Na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis ou idênticos, pois o agente, o que ele faz e a finalidade de sua ação é o mesmo. Devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas, não só definido pela virtude, pela virtude, pelo bem e pela obrigação, mas também pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão ou a escolha.
Quando deliberamos e decidimos sobre o passível, isto é, sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser, porque para ser ou deixar de ser, porque para ser e acontecer depende de nós, de nossa vontade, e de nossa ação.
Aristóteles acrescenta à consciência moral trazida por Sócrates, a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética. A importância dada por Aristóteles à vontade racional o leva a considerar uma virtude como condição de todas as outras virtudes: a prudência ou sabedoria prática. O prudente se define por ser aquele que em todas as situações é capaz de julgar e avaliar qual atitude e qual a ação que melhor realiza a finalidade ética, ou seja, entre várias escolhas possíveis, qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que bom para si e para os outros.
Virtude em seu sentido original designa uma qualidade, caráter de algo, uma força ou potência que pertence à natureza de algo. Em sentido ético, significa uma qualidade positiva do indivíduo que faz com que este de forma a fazer o bem para si e para os outros.
Se examinarmos o pensamento filosófico dos antigos, veremos que nele a ética afirma três grandes princípios da vida moral:
1. por natureza, os seres humanos aspiram ao bem e à felicidade, que só podem ser alcançados pela conduta virtuosa;
2. a virtude é uma força interior do caráter, que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade guiada pela razão, pois cabe a esta última o controle sobre instintos e impulsos irracionais descontrolados que existem na natureza de todo ser humano;
3. a conduta ética é aquela na qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar, referindo-se, portanto, ao que é possível e desejável para um ser humano. Saber o que está em nosso poder significa, principalmente, não se deixar arrastar pelas circunstâncias, nem pelos instintos, nem por uma vontade alheia, mas afirmar nossa independência e nossa capacidade de autodeterminação.
O Cristianismo: interioridade e dever
O cristianismo introduz duas diferenças primordiais na antiga concepção ética:
- em primeiro lugar, a idéia de que a virtude se define por nossa relação com Deus e não com a cidade (a polis) nem com os outros.
- em segundo lugar, a afirmação de que somos dotados de vontade livre – ou livre-arbítrio – e que o primeiro impulso de nossa liberdade dirige-se para o mal e para o pecado, isto é, para a transgressão das leis divinas. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o bem (obediência a Deus) e o mal (submissão à tentação demoníaca).
O cristianismo passa a considerar que o ser humano é, em si mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção leva a introduzir uma nova idéia na moral: a idéia do dever.
A filosofia moral passou a distinguir três tipos fundamentais de conduta:1. a conduta moral ou ética, que se realiza de acordo com as normas e as regras impostas pelo dever;2. a conduta imoral ou antiética, que se realiza contrariando as normas e as regras fixadas pelo dever;3. a conduta indiferente à moral, quando agimos em situações que não são definidas pelo bem e pelo mal, e nas quais não se impõem as normas e as regras do dever.
Juntamente com a idéia do dever, a moral cristã introduziu uma outra, também decisiva na constituição da moralidade ocidental: a idéia de intenção. O cristianismo, porém, é uma religião da interioridade, afirmando que a vontade e a lei divinas não estão escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres humanos.
O dever não se refere apenas às ações visíveis, mas também às intenções invisíveis, que passam a ser julgadas eticamente. Eis por que um cristão, quando se confessa, obriga-se a confessar pecados cometidos por atos, palavras e intenções. Sua alma, invisível, tem o testemunho do olhar de Deus, que a julga.
Natureza humana e dever
Se a ética exige um sujeito autônomo, a idéia de dever não introduziria a heteronomia, isto é, o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós?
Um dos filósofos que procuraram resolver essa dificuldade foi Rousseau, no século XVIII. Para ele, a consciência moral e o sentimento do dever são inatos, são “a voz da Natureza” e o “dedo de Deus” em nossos corações. Nascemos puros e bons, dotados de generosidade e de benevolência para com os outros. Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos e destrutivos.
Kant volta a afirmar o papel da razão na ética. Não existe bondade natural. Por natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais.